sexta-feira, 21 de maio de 2010

Artigo Prof. J Vasconcelos

Como podemos avaliar a Constituição de 88?
                                                                                               Professor Vasconcelos
 
      Tendo surgido após a mais longa ditadura militar vivida pelo país, a Constituição de 1988 é, na data de seu aniversário, festejada com carinho e respeito por todo o país. Pelo fato de conter avocações de princípios filosóficos de igualdade e de liberdade, se apresenta à nação como a “constituição cidadã”, tal como a nomeou Ulisses Guimarães.
      Todavia, podemos considerá-la legítima? Convém então saber o que é uma Constituição. Literalmente conceituada, trata-se de um conjunto de leis fundamentais de uma nação, em que se regra a formação e funcionamento do governo e dos poderes, realçando as garantias dos cidadãos.  Em outras palavras: com a Constituição, as regras máximas determinam como os cidadãos possam se governar. Resumindo, é a regra de governo.
      Para que se tenha uma regra dessa natureza, logicamente a nação deve aprová-la. Dessa maneira, cabe a nação por inteiro elaborar essa regra e dispor a todos os seus cidadãos igualmente a oportunidade de segui-la.
      Entretanto, a Constituição de 88 porta sérios vícios que a ilegitimam por completo. Em primeiro lugar, ela peca em sua origem.  Quem a elaborou? Foi a nação? Foi o povo?
      Na verdade, quem a elaborou foi um grupo de políticos profissionais sem nenhum respaldo dos demais cidadãos. Os seus textos, declarações, conceitos e opções, limites e amplitudes, restrições e brechas, foram feitos somente de acordo com a vontade dos que no momento detinham os poderes, sem nenhuma consulta ao povo. Este ficou amplamente alheio a todas as determinações constitucionais.  Os assuntos surgiram ao acaso. Comissões formadas e adequadas aos interesses políticos copiavam textos de Constituições de outros países. Ouviam-se demandas apenas de grupos ideológicos, ou religiosos, ou sindicais. O único não consultado foi o povo. Esse apenas tomava conhecimento de parte das propostas através da imprensa. Se concordasse ou não, pouco importava, não fazia a menor diferença. Outros países na mesma situação, como na Espanha, pelo menos colocou em forma de plebiscito a Constituição para ser validada pelo povo, embora se valendo de um método irracional de aprovação popular. A brasileira não se deu nem ao trabalho de proceder da mesma maneira.
      Para que houvesse legitimidade, a Constituição deveria encerrar máximas desejadas e aprovadas pelo povo, tal como prescreve a doutrina da Democracia Pura. Para tanto, haveria a necessidade de se processar a participação efetiva do povo.
      Num caso como esse, os cidadãos não podem alienar os seus direitos políticos a políticos profissionais e desaparecer de cena deixando aos mesmos fazer o que bem entender sobre algo que irá comandar o seu destino e fixar os parâmetros de todas as demais leis que surgirem posteriormente.
      Este fato é deveras um fator que desnatura e ilegítima qualquer diploma superior de um país. O estabelecimento de regras pressupõe isenção, imparcialidade e neutralidade, igualmente para os seus usuários. E tudo isso somente se alcança se os seus geradores não forem aqueles que as utilizem numa posição privilegiada.
      No caso desta Constituição, os reguladores tinham o poder e as prerrogativas nas mãos, o que lhes assegurariam meios de conservá-lo e consolida-lo.  Em palavras mais evidentes, assistimos indivíduos fazendo leis para regrar suas próprias disputas de interesse, o que é a frutificação da parcialidade e das omissões propositadas. É como se num jogo de futebol, o time que estivesse ganhando parasse o jogo e estabelecesse as regras e depois fosse continuado o mesmo jogo. Certamente, o time em vantagem aprovaria regras para consolidar sua vitória.
      E foi isso que precisamente ocorreu com a Constituição atual.
      O grupo político que a redigiu enfeitou a Lei Maior em seu começo com direitos figurativos aos cidadãos, copiadas de outras constituições, como a portuguesa, mas, em seguida, procuraram criar meios em que favorecessem suas prerrogativas e continuidade nos poderes, anulando tudo de bonito nos textos iniciais.
      Como resultado, verificamos que os poderes permaneceram praticamente com os mesmos senhores. Os dispositivos criados na Constituição permitiram essa eternidade.
      É a razão porque encontramos senadores e deputados ainda nos mesmos cargos desde o ano de 1988, em que começou a vigir essa Constituição. São os nossos conhecidos Sarney, Michel Temer, Eduardo Suplicy, Mão Santa, Tião Vianna, etc. E quando não são os próprios, são sucedidos por seus filhos e demais familiares, como o Antonio Magalhães e outros. Não permaneceram por terem sido produtivos e éticos; pelo contrario, alguns se tornaram famosos por escândalos e corrupção como o Sarney e o Renan. Alongaram seus mandatos porque criaram dispositivos constitucionais que lhes permitiram esse privilégio.
      Analisemos alguns casos de seu texto. De certo, a igualdade e liberdade consagradas no Titulo II é no fundo de natureza figurativa. Encanta, mas logo a seguir começam os artigos da desigualdade e das restrições aos cidadãos. Passamos pela previdência discriminatória em favorecimento de algumas classes em detrimento dos demais cidadãos, como no artigo 40 para outra iniqüidade prescrita no artigo 41, favorecendo novamente a alguns indivíduos.
      O artigo 5º assegura aos cidadãos o ato judicial contra os abusos do poder (incisos XXXIV e LXXIII), todavia adiante não garante o processamento da reivindicação popular e no Título VI deixa o cidadão reclamante à mercê da vingança dos detentores dos poderes. Da mesma forma como se passa com a Constituição Argentina.
      O jornal Clarin denunciou corrupção no governo e logo estavam mais de 200 fiscais do imposto de renda devassando a sua empresa. Imagine um simples cidadãos denunciando o abuso de poderes dos seus detentores. Já tivemos um exemplo atroz com o caso do jardineiro que informou sobre reuniões sinistras de ministros envolvidos com irregularidades em Brasília, que resultou em investigações da vida privada do operário com o fim de o comprometer, terminando por sacrificá-lo no mercado de trabalho. Por outro lado, se a reclamação for contra o Judiciário, este tem meios de aniquilar o reclamante ou de impedir o andamento do processo sem que o cidadão possa fazer alguma coisa a não ser ficar pagando advogados para recorrer indefinidamente.
      O artigo 14 do Capitulo IV do Título II assegura soberania aos cidadãos através do plebiscito, contudo no artigo 49 (inciso XV) do Título IV retira esse direito do cidadão, tornando sem efeito o que foi declarado antes.
      O artigo 2 do Titulo I e o artigo 170 (inciso VII) estabelecem como uma das missões dos detentores dos poderes, a redução das desigualdades sociais, porém o artigo 51 do Título III deixa ao infinito a elevação de remunerações e mordomias dos parlamentares que, em cadeia, eleva também salários e vantagens pecuniárias de outros detentores dos poderes, como o Judiciário.
      E assim a nação é assustada diariamente com as propostas de elevação de remunerações dos parlamentares, de suas verbas de indenização, criação de um número interminável de vantagens diretas e indiretas como o auxílio moradia, o auxílio paletó, o auxílio graxa de sapato, o auxílio viagens nacionais e internacionais, aposentadorias milionárias e facilitadas, automóveis de luxo, refeições caras e banquetais, etc.
      Concomitantemente, o artigo 48 do titulo IV dá aos parlamentares poderes para conseguir outras vantagens sob pretextos diversos nas verbas orçamentárias, com suas interesseiras emendas.
      No conhecido escândalo dos Anões, ocorrido na década de 90, os parlamentares conseguiram promover um rombo de mais de 800 milhões de reais ao tesouro nacional. A partir de dados do Tribunal de Contas da União, foi descoberto também que cerca de 50 milhões de dólares destinados a entidades assistencialistas foram desviados entre 1969 e 1993. Nada menos de 18 parlamentares estavam implicados. Mas nenhum devolveu sequer um centavo à nação, uma vez que o sistema aplicado na Constituição permite tal impunidade. O pior é que foi fácil saber da ilicitude nas entidades assistencialistas porque não havia suficientes recibos contabilizados; agora basta contabilizar e tudo pode ser novamente passado batido. Outros escândalos sucederam a este.
      O escândalo do Mensalão foi gravíssimo, pois vários parlamentares recebiam propinas mensais como venda de seus votos, cuja origem do dinheiro provinha indiretamente de partido político e do governo. Somente dois parlamentares foram cassados, inclusive um deles foi o que fez a denúncia. Outro escândalo, o dos sangue-sugas também não resultou em nenhuma punição e devolução de dinheiro à nação. O povo está impedido pela Constituição de 1988 de processar e de punir os infratores parlamentares, o que evidencia a desigualdade na aplicação da justiça, contrariando o famoso e festivo artigo 5º.
      O artigo 1º do Titulo I declara que o poder emana do povo, mas o artigo 60 do Titulo III deixa livre aos políticos alterarem quando lhes aprouver as leis supremas da nação sem nenhuma aprovação do povo.
      O artigo 192 do Título VII prescreve que o sistema financeiro nacional é destinado a servir aos interesses da coletividade, mas no artigo 99 do Titulo IV assegura autonomia ao judiciário, sem controle dos cidadãos e independente dos interesses da nação. Como resultado, temos os conhecidos palácios e escritórios sofisticados pelo país todo, com investimentos supramilionários e uso de aparelhos acima das necessidades, seguindo em conseqüência os escândalos como o ocorrido com o magistrado Lalau em São Paulo com desvio de uma quantia fabulosa, cerca de 600 milhões de reais.
      O artigo 85 do TítuloIV estabelece a observância pelo presidente da república sobre o exercício dos direitos políticos individuais e sociais e o cumprimento das leis e o artigo 5º deixa claro a liberdade de consciência e a livre manifestação do cidadão. Pois bem, o artigo 84 do titulo IV e o titulo VII estendem ao presidente o poder de nomear os dirigentes das empresas estatais assegurando-lhe o completo domínio sobre as mesmas. Estas empresas, que são poderosíssimas, com orçamentos incomensuráveis e milionárias verbas publicitárias, podem facilmente exercer o domínio da imprensa, exigindo certos tipos de comportamento das mesmas, a ponto de exigir exoneração de empregados simplesmente por não aceitar opiniões que externem. Tivemos exemplos em apresentadores de televisão nesses últimos anos.
      Em conseqüência, o presidente da República, se for um indivíduo ambicioso e inescrupuloso, poderá atingir completamente os direitos individuais e por a zero tudo o que declara o artigo 5º. Por outro lado, este presidente deixa de ser um mandatário para servir ao povo e se torna um semi-deus todo poderoso, alimentado em seus comandos sobre as gigantescas empresas estatais. E os setores que deviam fiscalizá-lo ou impedi-lo de tal conduta, são arrefecidos pelo artigo 84 do titulo IV que lhe concede o direito de nomear o procurador geral.
      O silêncio da mídia às atitudes desleais e ilícitas do presidente, conjugado à propaganda indireta por diversos meios obscuros, concorre a que se efetue o endeusamento do mesmo, que se sente à vontade para outros atos irregulares e de atentado à liberdade dos cidadãos, além de encontrar possibilidades de eternização no poder.